terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Nosso Tempo

Tempo. Tempo que nos persegue por toda a vida, o tempo todo. E o que refletimos sobre ele é muito pouco, quase nada.
Nosso tempo é cíclico, constante, repetido. São as horas do relógio, o dia e a noite, as quatro estações, um ano, uma era, e seu limite máximo é uma vida. Os acontecimentos repetem-se cotidianamente: festas, aniversários, datas comemorativas. Tudo marcado por uma constância perfeita, sempre igual, tudo gira, se move, revoluções ocorrem para que tudo volte a ser como era antes. O passado é história, no futuro mais do mesmo, e vivemos eternamente o presente.
Nosso tempo é dinâmico. Criamos ferramentas para encurtar o tempo: os trens, a internet, o macarrão instantâneo. Fazemos de tudo para que tudo demore menos. Assim temos a ilusão de que poderemos ter mais tempo dedicado a ir ao parque, ler livros, estar com a família ou compor uma obra de arte. Na prática passamos em média quatro horas de cada dia na frente da televisão.
Nosso tempo é ilusão. O tempo real é cruel, esmagador. Preferimos nos fechar em um tempo abstrato. Aqui as coisas são mais coloridas, são menos doloridas. Sacrifico o agora em nome do amanhã. No amanhã tudo é melhor e nada acontece. O amanhã que nunca chega. Sacrifico sonhos de um tempo de liberdade pela ilusão de um mundo futuro onde se consome mais do que posso consumir agora. Nessa ilusão permito-me ser consumido. A utopia da juventude morre comigo, em um passado de rebeldia não fundamentada, sou agora uma mera carcaça que se arrasta e produz mais e mais.
Nosso tempo é mercadoria. Vendemos, em média, oito horas deste diariamente para que possamos – nas horas restantes – consumir os frutos do tempo perdido, vendido. Consumimos o tempo como um giro acelerado de festividades. Festividades nas quais compomos paródias vulgares do diálogo e da doação onde mitos nos tencionam a despesas econômicas absurdas e promessas seguidas de decepção. O conforto de uma decepção é encontrado então na promessa de outra decepção. Festejamos em uma época sem festas.
Nosso tempo não tem mais tempo que não é produzir e consumir, é tudo um grande ciclo onde o real e ilusório já não mais se distinguem. É fundamental nos esquecermos que o mundo já possui o sonho de um tempo e que para vive-lo de fato, devemos apenas possuir consciência dele.

Boas festas!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Nós, ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos

Das profundezas das catacumbas fétidas de lugar nenhum um forte ruído ecoa. Todos os cadáveres envolveram-se em uma árdua discussão por conta de uma inútil questão levantada por uma carcaça ainda em decomposição.
            - Será que existe vida antes da morte?
            - É claro que sim – retrucou um crânio – pois para estar morto pressupõe-se que um dia se esteve vivo!
            - Acho pertinente sua colocação meu caro amigo – disse um amigavelmente um dos defuntos – mas assim sendo, pergunto-lhe: o que é viver?
            Por um instante todos ficaram em silêncio, dada a complexidade da questão. Até que de dentro de um sarcófago, ouve-se uma voz:
            - Viver é estar vivo oras, ao contrário de nós que aqui estamos confinados, quem vive é livre para fazer de sua vida o que quer!
            - Será mesmo que quem vive é livre pra fazer o que quer de si mesmo?
Disse o defunto.
            - Estou certo disso
Afirmou a voz do sarcófago.
            - Concordo contigo – falou o defunto – quem vive é realmente livre para fazer o que quiser de si mesmo. São livres para comer, desde que tenham dinheiro para pagar por isso. São livres para trabalhar aonde quiserem desde que lhe queiram empregar. São livres para ir aonde quiserem, desde que tenham os documentos para cruzar as fronteiras e dinheiro para o transporte. Livres para amar, desde que o trabalho lhe dê tempo para fazê-lo com dignidade.
            - Mais deste ponto de vista, os vivos não são mais livres do que nós, que já esticamos as canelas – disse o crânio.
            - Pois é, mas eles têm a possibilidade de guiar a própria vida, de viver plenamente, mais preferem seguir como máquinas, fazendo todos os dias as mesmas coisas. Acordar cedo, ônibus, trabalho, almoço, trabalho, casa, dormir, acordar cedo, ônibus…sempre no mesmo ritmo, juntando as migalhas que ganham para que um dia possam curtir a vida como se deve – completou a carcaça.
            Até que sabiamente conclui o crânio:
            -Verdade, são todos escravos de si mesmos, deixam-se explorar e nem se dão conta disso. São todos uns tolos que esperam pela morte para começar a viver…
            Assim encerra-se mais uma noite de discussão inútil e tempo perdido nas terras de lugar nenhum que não pertencem a ninguém.

sábado, 11 de dezembro de 2010

O que são os rios?

Eles são a mistura da água que escoa das vertentes com todo o tipo de sedimentos: areia, silte, cascalho, argila, e uma porção de outros. Todos estes conduzidos para uma saída em comum, onde namoram as águas subterrâneas e superficiais, formando fluxos intensos, eróticos. O modelado do relevo tem aí sua contribuição fundamental, conduzindo essa mistura por um passeio pelos mais diversos lugares. Ora sobe, ora desce, ora reto, ora a ziguezaguear, devorando, sempre que pode, o barro vermelho das margens, acariciando as rochas, machucando a areia, infiltrando, sedimentando e mudando as cores de sua roupa. Por vezes se embriaga, levando consigo embaúbas, baobás, carros e casas. Até que finalmente, enjoado de tanto meandrar, vomita ao mar tudo aquilo que devorou no caminho.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Não Há Nada de Novo Sob o Sol

Preto, pobre, agredido, morto…
Não há nada de novo sob o Sol.
Mulher, agredida, violada, prostituída…
Não há nada de novo sob o Sol.

A luz que venda meu olhos
É a mesma que amarra minha boca
Cruzo com a morte a todo momento
E a cada esquina improviso uma saída
Para viver, provisoriamente, mais um instante.

As feridas do meu corpo queimam sob o azul do céu
Nuvens nefastas, árvores medonhas, flores do mau.
A agressão que rondava-me em vida estende-se pela morte
Um policial me vigia, nada faz, só vigia.
Enquanto minha vida escorre pelo ralo.
Assiste meu definhar com uma pitada de prazer.
O prazer da instituição, menos um!

Liberto-me agora do que me subjulgava, da própria vida.
Mais só assim me verei livre da agressão e da repressão?
Não há nada de novo sob o sol.

Dedicado a Samuel, mais uma estrela que se apaga nessa guerra civil cotidiana…

domingo, 28 de novembro de 2010

Crime e Castigo

Primeiro levaram os negros. Mas como não sou negro, não me importei e nada fiz. Depois levaram os índios. Como também não sou índio, não me importei. Em seguida, levaram os pobres, e como não sou pobre, deixei as coisas acontecerem. Mas agora estão me levando, muitos observam, mas ninguém faz nada.
Há algum tempo anunciaram a realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil em 2014. As pessoas comemoraram, pois seria uma oportunidade única para assistir de perto esse grande evento de porte internacional. Dias depois os jornais passam a anunciar um aumento da violência no país como um todo, propondo a construção de mais presídios, como se a solução para o problema fosse colocar todo mundo na cadeia.
Mais isso não bastou, na cidade de São Paulo, após o anuncio da construção do estádio de abertura da Copa no bairro de Itaquera, região periférica da cidade, os terrenos se valorizam absurdamente, de um dia para o outro, ao mesmo tempo em que pipocam incêndios (comprovadamente criminosos) seguidos de desapropriação nas favelas da região, obrigando toda uma população a se deslocar para ainda mais longe do centro da cidade. Neste mesmo centro, continua um processo de “revitalização”, com projetos do governo como a “Nova Luz” e “Cidade Limpa”, que esvaziou os cortiços, onde viviam trabalhadores para a construção de museus inúteis e condomínios de luxo. A antiga “cracolândia” se espalha pela cidade, devido ao aumento da repressão policial na região, deslocando-se cada vez mais para as periferias.
No Rio de Janeiro, que também será cidade sede do evento, inicia a ocupação das comunidades pela PP (Polícia Pacificadora), que com seus fuzis, metralhadoras e pé na porta da casa dos moradores levou a “paz” aos morros cariocas, de acordo com os jornais. Parece que não foi o suficiente, pois nesta semana decidiram utilizar as tropas brasileiras (aquelas mesmas que treinavam guerrilha urbana em terras haitianas) para invadir os morros com o discurso de que houve uma reação dos traficantes destas mesmas comunidades.
O mundo está dividido em dois tipos de pessoas, as que não comem e as que não dormem. As que não dormem não o fazem com medo das que não comem. Se todos tivessem pão e condições dignas para desfrutar da própria vida, é certo que não teríamos mais problemas com a violência, pois todos comeríamos e todos dormiríamos. Pare pra pensar um instante, quase todos os casos de violência que ocorrem envolvem algum tipo de apego à propriedade de alguém sobre algo ou outro alguém. Exemplo claro são os roubos, uma pessoa que tem alguma coisa entra em confronto com uma pessoa que não o tem, as duas disputam a propriedade deste objeto por meio da violência. O mais forte leva. Ou ainda um caso de violência contra a mulher, pois o homem se faz proprietário dela, sentindo-se no direito de agredi-la.
Parece que as nossas autoridades se recusam a enxergar que as origens do que eles chamam de “crime organizado” é, antes de tudo, um problema social, não um problema policial. Enquanto houverem marajás e miseráveis convivendo no mesmo espaço, haverá violência. Será por isso que nas grandes cidades se expulsa a população carente para cada vez mais longe dos centros? Bom, mas resolveer o problema social leva tempo, e os gringos não iriam gostar de ver de perto a pobreza existente nas terras tupiniquins. Temos que manter a boa imagem e a pinta de playboy, afinal de contas, estamos crescendo. É mais fácil mandá-los embora.
Parece-me interessante em clima de copa do mundo ver que a população que constrói a cidade e os estádios não ter o direito nem de assistir os jogos nem de habitar as cidades sedes. Agora observe o nosso contexto histórico: aumento da repressão nas comunidades carentes, a mídia de massa com forte ideologia elitista, crescimento econômico, criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, fortalecimento dos partidos e programas conservadores dentro e fora das eleições, perseguição étnica (o caso dos nordestinos em São Paulo). Me lembra muito o contexto da Alemanha e da Itália nas décadas de 1920 e 30. Estão me levando agora. Levam-me porque percebi que, esta política que temos se aproxima muito do nazismo e do fascismo, que muitos acham que ficou no passado. Querem-me calado, cabeça baixa, sozinho. Mas eu grito, esperando que minha voz seja ouvida e se junte a outras, formando um coral que abafe todas as vozes do Estado, do poder e do autoritarismo. Grite! Revolte-se! Pois eles podem levar você depois de mim.

domingo, 21 de novembro de 2010

Andorinha

Andorinha, andorinha
Andorinha Voou
Andorinha caiu
Curumim a pegou

Vêm comigo menino
Conhecer a natureza
Vamos sair deste mundo
Que este mundo é só tristeza

Andorinha, andorinha
Andorinha voou
Foi subindo pro céu
Curumim carregou

Segura bem menino
Não olha pra baixo não
Não tem saudade do mundo
Que o mundo é só perdição

E voando, voando
Por fim se chegou
Andorinha desceu
Curumim apeou

No céu é sempre meio dia
Não tem noite nem doença
Nem nenhuma malvadez
A gente vive brincando
E não se morre outra vez

Lá em cima, no céu
Ainda te enxergo
Intragável na multidão
Saudades do meu curumim...
Que se chama Isabel.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A Escola

A professora, no primeiro dia de aula, ao fazer a chamada repara um nome diferente na lista, e então pergunta:
- Mohamed, quem é Mohamed?
-Sou eu professora!
Responde o garoto.
-Que nome é esse, de onde você é?
-Então professora, minha família chegou faz pouco tempo da Argélia. Somos muçulmanos e passamos a viver aqui na França por causa do trabalho do meu pai.
-Ah sim, entendo...
Disse, pensativa, a professora.
-Mas acontece o seguinte, agora estamos na França e você terá que se adaptar à uma cultura diferente. A partir de hoje você é francês. Mais ainda, agora você também é cristão e se chama Jean Claude, tudo bem?
O menino estranhou a situação, mais depois de uma longa conversa com a professora aceitou a nova regra.
Chegando em casa, dá de frente com sua mãe, que lhe pergunta:
-Oi Mohamed, como foi o primeiro dia de aula?
-Mohamed não mãe, agora eu me chamo Jean Claude!
-Como assim meu filho – retruca a mãe inconformada.
-E digo mais, a partir de hoje eu sou francês e cristão.
A mãe não agüentou ouvir todas aquelas coisas do filho e lhe deu uma coça que o deixou transtornado.
No fim do dia, quando o pai chega do trabalho, a mãe lhe conta tudo o que aconteceu e, ao conversar com o filho e constatar a situação, lhe dá outra coça.
No dia seguinte, na escola, a professora olha o menino todo machucado, de um jeito que mal conseguia andar. Curiosa ela pergunta:
-O que aconteceu Jean Claude?
-Pra senhora ver como é esse mundo professora, faz só um dia que me tornei cristão e  já fui atacado por dois árabes terroristas enfurecidos dentro da minha própria casa, pode?

sábado, 30 de outubro de 2010

Democracia

É dia de Sol. Todos seguem trabalhando como de costume, cada um com a tarefa que lhe cabe. É fim de tarde, e estão cansados, mais ainda há muito trabalho a fazer.
O capataz toca o sino, convocando todos para uma reunião com o Coroné. Imediatamente todos param com o que faziam e se juntam em roda no centro do pátio da fazenda. O Coroné chega com o charutão na boca, cheio de pompa, e diz com uma voz retumbante:
- Hoje é um novo dia de uma nova era. Imaginem vocês que eu estava sentado em minha poltrona quando passei a pensar na vida difícil que se leva aqui com todo esse trabalho. Até o momento em que me passou pela cabeça uma pergunta: Por que será que depois que se trabalha tanto, muitas vezes se apanha por não ter feito um bom serviço?
Todos olhavam curiosos para o Coroné, que gesticulava absurdamente enquanto falava.
-Bom, digo a vocês que este tempo de sofrimento acabou. À partir de hoje não se apanha mais com qualquer chicote. E agora vocês têm a oportunidade de escolher sob qual açoite serão deflagrados.
Todos se entreolharam, procurando em outros uma reação que não conseguiam ter. Até que, do nada, surge uma voz no meio daquela multidão de sofredores:
-Ah, e eu lá sou trouxa, é claro que vou querer aquele menor ali do canto, é o que machuca menos!
E todos seguiram escolhendo os chicotes que julgavam ferir menos a pele, empolgados com o novo direito que lhes foi concedido. Uma benção, no mínimo.
Emílio então se levantou e tentou dizer alguma coisa. Mas ninguém entendia o que ele falava, pois tinha apanhado a noite toda e lhe quebraram os dentes.  Por mais que ele murmurasse sons guturais, aparentemente sem significado, ninguém o entendia.
Se todos pudessem ler a mente de Emílio, entenderiam que ele tentava questionar não o tamanho do açoite, mais o porque todos deveriam apanhar quando não fizessem um bom serviço. Mais ainda, porque todos tinham que trabalhar pra sustentar o Coroné e sua família?
 E no fim, todos seguiram, escolhendo o sofrimento que julgavam menos dolorido, mas sem cogitar a hipótese de não mais sentir dor.

domingo, 24 de outubro de 2010

Hino Racional Brasileiro

Ouviram do Ipiranga as margens trágicas
De um povo Heróico, bravo, e relutante
E o sol da liberdade, em falsos púlpitos
Ouviu-se o som da pátria destoante
Desdenhou da igualdade
Conseguimos torturar com braço forte
Em teus seios, ó liberdade
Prostituída e humilhada até a morte

Ó pátria amada,
Idolatrada,
Salve, salve!

Brasil, um sonho intenso, um falso símbolo
O amor e a esperança desfalece
Em seu cinzento céu, sem gosto, insípido
A imagem do cruzeiro empalidece
Gigante pela própria safadeza
Um povo que se explora até o osso
E o teu futuro espera por grandeza

Terra dourada,
Entre outras mil,
És tu, Brasil
Tão descarada!
Dos filhos deste solo és mãe senil!
Pátria amada Brasil.

sábado, 16 de outubro de 2010

Noturno em São Paulo

Propagandas, oportunidades!
As luzes passam e furtam-me os sentidos.
Sigo caminhando
Recolhendo as raspas de um amor passado
Traças roem-me o peito.

Na cidade de pedra
As almas dos escravos seguem
Bem vestidas.
Correm, com toda a força
Rumo ao lugar de onde partiram.

Um comprimido de distração.
Uma dose de sorriso.
Uma carreira de sedução.
Todos os vícios de ilusão
Que me permitem seguir em vão
Neste caminho que não sei bem onde dá.
Não sei não.

É duro caminhar na via expressa.
Esbarro em mim mesmo.
Ignoro!
É assim, vivo com pressa.
Me enxergar em outro pode ser dolorido
Pode ser ridículo.

Visto meu cabresto e sigo junto à boiada
Tocando os bois rumo ao abatedouro.
Abatedouro cotidiano.
Aonde morremos todos os dias.
Onde renascemos à cada feriado e sexta-feira
O liquidificador tritura as almas

Seguimos morrendo!

domingo, 3 de outubro de 2010

Les Règles du Jeu

O jogo começou. O tabuleiro está montado. As regras estão estabelecidas. Os companheiros, agora adversários, se entreolham. Os dados rolam. Assim se inicia a partida, frenética, irracional, todos buscando a vitória. Buscando suprir uma necessidade absurda. Alguns trapaceiam, outros procuram jogar limpo, outros, tantos, se desesperam, mas ninguém se recusa a jogar. Avanço duas casas e me embriago no bar do fim do mundo. Uma rodada sem jogar. As peças do jogo isolam-se cada vez mais, cartas são escondidas sob a manga dos paletós, a reta final é anunciada. Por fim, alguns, poucos, vencem. Uma multidão se perdeu, embasbacados com o fim da partida. Eis, então, à margem da vitória, a derrota.

domingo, 26 de setembro de 2010

Ana preta

Ana, preta. Ana bela. Uma boniteza maltratada, um sentimento estranho que é dor, e é gozo.
Ana trabalha na casa de Nhô Afonso, um rico fazendeiro da região.
 Todos os dias acorda de manhã cedinho, bem mais cedo que o resto da casa, para preparar as melhores gostosuras para o café-da-manhã. E todos os dias a patroa, Sinhá Alberta a xinga com muitos nomes feios, fala que o café está ruim, joga tudo no chão e diz:
- deixe de ser preguiçosa sua maldita, faça tudo de novo!
E Ana refaz, quieta, toda a comida, afinal de contas, as crianças precisam comer.
Logo em seguida Ana leva os filhos do patrão à escola, pois são eles o futuro da nação, precisam aprender muito pra ser grande gente grande. Ana leva as crianças no lombo, como se brincando de cavalinho. Os pivetes parecem levar a sério a brincadeira, enchendo-a de pontapés e socos na cabeça. Mas Ana agüenta a dor, afinal de contas, as crianças precisam comer.
À tarde Ana limpa a casa, deixa tudo brilhandinho pra sinhá patroa não reclamar. Mas Alberta achou um grão de pó no canto esquerdo da porta, e deu com a vassoura na cabeça de Ana, abrindo uma ferida enorme. Mais como estão todos muito longe de um médico, Ana agüenta a dor sem reclamar, afinal de contas, as crianças precisam comer.
Durante a noite Ana leva as crianças do patrão para a cama, para dormir, mas elas lhes chamam de muitos outros nomes feios, pois querem brincar de cavalinho um pouco mais. Depois Ana coloca seus próprios filhos para dormir, todos juntos sobre uma esteira de palha no chão, esta noite está muito frio.
Ana deita-se então em seu quarto, também em uma esteira de palha. O patrão entra no quarto, está cheio de desejos e quer que Ana os sacie. Ana resiste por um tempo, mais é inútil. Ele a machuca muito, e ela sente nojo do patrão, mas resiste bem, pois afinal de contas, as crianças, bastardinhos de Nhô Afonso, precisam comer.
E a rotina se repetia robóticamente todos os dias,até que um belo dia algo fora do normal acontece. Ana é liberta pelas forças públicas no dia 8 de Maio de 1892, quatro anos após o decreto da Lei Áurea, que se propunha a libertar os escravos de todo o Brasil. Quatro anos se perderam, talvez mais. Talvez a vida toda, a que se foi e a que virá. Mais agora Ana é livre.
Ana, preta. Bela Ana. Bela como todos os trabalhadores, que ainda não se libertaram...

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Carta aos Australopithecus

Olá!

Eu, homem moderno, diante de vosso primitivismo, me sinto na obrigação de lhes dizer o quanto evoluímos desde sua época.
Nós constituímos um novo modelo de sociedade, bastante diferente do vosso, e neste modelo é baseado todo o nosso progresso. Aqui, não necessitamos de caça, pesca, ou ir até uma fonte qualquer buscar água. Podemos trocar tudo isso por pedaços de papel numerados, que chamamos de dinheiro, um equivalente geral de troca que deixamos guardado em um lugar chamado banco. Praticamente todas as nossas relações giram em torno deste, que é o curriculum vitae da civilização.
            Outro avanço de nossa época é que não precisamos trabalhar, como vocês o fazem, para conseguir dinheiro e trocar por coisas. Aqui, podemos fazer com que outros trabalhem para nos dar tudo aquilo o que desejamos, e nós, que não trabalhamos, por caridade, damos aos que trabalham uma parcela do trabalho que este realizou, parcela que chamamos de salário. Mais que fique claro que o que lhes damos é só o suficiente para que estes continuem trabalhando.
            Ah, mais pra que isso seja possível sem que essas pessoas cometam a insolência de se rebelar ao fato de trabalharem para nós, nós inventamos algumas instituições bastante interessantes.
            Primeiro inventamos o Estado, para que possamos centralizar o nosso poder social em torno de nós mesmos. Inventamos também as leis, que são as nossas regras para deixar claro quem manda (nós) e quem obedece (todo o resto). Inventamos também a polícia e os exércitos, para que o nosso poder seja efetivado. Para que quem trabalha pense que essas coisas são naturais, ou seja, sempre existiram, inventamos a religião, a escola, e os meios de comunicação de massa (TV, rádio, internet, etc.).
            Enfim, podemos dizer que, desde sua época evoluímos tanto que o sexo, que em sua época servia simplesmente ao prazer e à reprodução, hoje também se troca por dinheiro. O prazer é menor, claro, pois não temos muito tempo a perder com isso. Estabelecemos entre homem e mulher uma relação meramente funcional, simplesmente para acalmar a nossa libido. Qualquer outra forma bárbara de relação sexual é abominada, a estes que insistem em manter relações que consideramos anormais, colocamos fora do absoluto convívio social, mas fingimos aceita-los, para evitar a fadiga.
            A muitos dos seres que deveriam trabalhar, fazemos questão de não dar ocupação alguma. Isso por que, quando muitos estão sem emprego, podemos reduzir o dinheiro pago aos que trabalham, pois muitos trabalhariam por muito menos do que eles. É essencial mante-los desesperados!
            Mante-los com fome, sem abrigo, sem prazer e o melhor modo de dominá-los, é um jeito de fazer com que se vendam bem barato, para que assim tenhamos menos custos e possamos juntar mais dinheiro em menos tempo.
            Espero que, com este curto resumo do modo como funciona a nossa sociedade, vocês, povos primitivos possam otimizar sua evolução para que cheguem mais cedo a ser como nós, homens (nem sempre mulheres) do progresso. É para nós um fardo grandioso conduzir ao progresso o nosso mundo, e queremos compartilhá-lo com os homens de sua época. Caso na se sintam contemplados com a proposta, entenderemos que sua ignorância é tamanha que não conseguem vislumbrar a grandeza do mundo moderno, e por isso contnuam no primitivismo. Lhes garanto, será melhor que aceitem.

Ass; Homem da civilização.

domingo, 29 de agosto de 2010

Pão e pedras?

Queremos pão, mas também às rosas!!
É interessante ver como nós, seres humanos nos descolamos da natureza, não nos vemos como parte dela. Quem nunca ouviu aquela frase famosíssima: "vamos salvar a natureza"?
E nós seres humanos, não somos também natureza?
Somos o que então?
Fazemos da natureza um objeto a ser dominado por nós, homens, sujeitos. Tendo-se em vista que, nesta mesma lógica do capital e do lucro, não são todos os homens que podem ter o controle e o domínio da natureza, este ato se faz por uma porção mínima da população humana, que se faz proprietária da natureza, enquanto todos os outros homens (e mulheres) minguam como meros objetos perante a estes, sendo, quando possível, descartados.
Mas vamos pensar um pouco, só um pouco. O domínio do Homem sobre a Natureza só tem sentido, se este mesmo homem é não-natureza, certo? Bom isto coloca o homem um nívle acima de tudo o que é "natural". Mas quem dominaria o homem? Outros homens? Existiriam seres humanos mais aptos que outros seres humanos e isso justificaria a diferenç aeconômica e social existente na sociedade?
Parece que é bem sob esse tipo de idéias que a mundo humano é concebido.
Essa “invenção da natureza”, dentro da lógica capitalista se torna demasiado interessante, pois esta se difere de outras economias de troca no seguinte: produz, de um lado, uma classe que domina os meios de produção para toda a sociedade, ainda que não produza trabalho, e, de outro lado, uma classe que domina somente sua própria força de trabalho, que precisa ser vendida para sobreviver. Portanto, esta diferenciação em classes sociais não é natural, esta classe dominante, tendo em vista manter a sua dominação em relação as outras, cria uma série de instituições como as leis, a polícia, a escola, a religião, entre outras, tendo em vista naturalizar este e outros processos de injustiça sociais presentes constantemente na sociedade, porém, o quadro de fome, de guerras, de opressões que instituiu-se em nome da “civilização”, constata a inconsistência destas instituições e, sobretudo, do Estado.
E é por isso que nós, homens e mulheres, atrás do PÃO nosso de cada dia, nos recusamos a aceitar este modelo de sociedade que nos é imposto, esta coerção consentida (e da qual nos cansamos de consentir). Somos seres Naturais, assim como as plantas, os peixes e as PEDRAS.
Meme quand je marcherais dans la vallée de l'ombre de la mort je ne craidrais aucun mal, car tu es avec moi.
Pão e Pedras...

Baltazar Called

sábado, 21 de agosto de 2010

Manifesto Oportunista

Tirem as barbas e bigodes!
Vocês foram descobertos!!
Minha intenção é ruim, e eu sou bem pior do que pareço. Vim pra sabotar seu raciocínio, com bombas dialógicas e tiros em forma de palavras. Violentamente pacífico, imprevisível.
Mais, espera um pouco, o que isso tudo quer dizer?
O sono da razão desperta monstros, mais seu despertar pode revelar caminhos de emancipação - é o que dizia uma imagem famosa de Goyá. É essa nossa intenção aqui, libertar montros, pesadelos, e quem sabe um dia nos libertarmos também.
Aqui não se respeita direitos autorais, tudo o que for escrito é uma plágio mal feita do mundo real, uma reprodução distorcida do mundo em fantasia, ilusão.
Logo, nestes tempo de silêncio, boca gelada e murmúrio, eu grito. Grito pelo prazer de ter cinco sentidos num só. Falo com a língua torcida, e meus dentes de vidro se quebram sob a agressão de anuncios e propagandas, o polícial me vigia.
Relato aqui, de tempos em tempos, em uma simultaneidade retardada, o dia-a-dia desta guerra civil cotidiana na qual sobrevivo, em uma utopia quase particular de que se é tempo de morte, logo será tempo de amor.

Baltazar Called