sábado, 30 de outubro de 2010

Democracia

É dia de Sol. Todos seguem trabalhando como de costume, cada um com a tarefa que lhe cabe. É fim de tarde, e estão cansados, mais ainda há muito trabalho a fazer.
O capataz toca o sino, convocando todos para uma reunião com o Coroné. Imediatamente todos param com o que faziam e se juntam em roda no centro do pátio da fazenda. O Coroné chega com o charutão na boca, cheio de pompa, e diz com uma voz retumbante:
- Hoje é um novo dia de uma nova era. Imaginem vocês que eu estava sentado em minha poltrona quando passei a pensar na vida difícil que se leva aqui com todo esse trabalho. Até o momento em que me passou pela cabeça uma pergunta: Por que será que depois que se trabalha tanto, muitas vezes se apanha por não ter feito um bom serviço?
Todos olhavam curiosos para o Coroné, que gesticulava absurdamente enquanto falava.
-Bom, digo a vocês que este tempo de sofrimento acabou. À partir de hoje não se apanha mais com qualquer chicote. E agora vocês têm a oportunidade de escolher sob qual açoite serão deflagrados.
Todos se entreolharam, procurando em outros uma reação que não conseguiam ter. Até que, do nada, surge uma voz no meio daquela multidão de sofredores:
-Ah, e eu lá sou trouxa, é claro que vou querer aquele menor ali do canto, é o que machuca menos!
E todos seguiram escolhendo os chicotes que julgavam ferir menos a pele, empolgados com o novo direito que lhes foi concedido. Uma benção, no mínimo.
Emílio então se levantou e tentou dizer alguma coisa. Mas ninguém entendia o que ele falava, pois tinha apanhado a noite toda e lhe quebraram os dentes.  Por mais que ele murmurasse sons guturais, aparentemente sem significado, ninguém o entendia.
Se todos pudessem ler a mente de Emílio, entenderiam que ele tentava questionar não o tamanho do açoite, mais o porque todos deveriam apanhar quando não fizessem um bom serviço. Mais ainda, porque todos tinham que trabalhar pra sustentar o Coroné e sua família?
 E no fim, todos seguiram, escolhendo o sofrimento que julgavam menos dolorido, mas sem cogitar a hipótese de não mais sentir dor.

Um comentário:

  1. Kaue, é o que eu sempre digo... vc é simplesmente genial! Adoro seus textos!!

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