terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Nosso Tempo

Tempo. Tempo que nos persegue por toda a vida, o tempo todo. E o que refletimos sobre ele é muito pouco, quase nada.
Nosso tempo é cíclico, constante, repetido. São as horas do relógio, o dia e a noite, as quatro estações, um ano, uma era, e seu limite máximo é uma vida. Os acontecimentos repetem-se cotidianamente: festas, aniversários, datas comemorativas. Tudo marcado por uma constância perfeita, sempre igual, tudo gira, se move, revoluções ocorrem para que tudo volte a ser como era antes. O passado é história, no futuro mais do mesmo, e vivemos eternamente o presente.
Nosso tempo é dinâmico. Criamos ferramentas para encurtar o tempo: os trens, a internet, o macarrão instantâneo. Fazemos de tudo para que tudo demore menos. Assim temos a ilusão de que poderemos ter mais tempo dedicado a ir ao parque, ler livros, estar com a família ou compor uma obra de arte. Na prática passamos em média quatro horas de cada dia na frente da televisão.
Nosso tempo é ilusão. O tempo real é cruel, esmagador. Preferimos nos fechar em um tempo abstrato. Aqui as coisas são mais coloridas, são menos doloridas. Sacrifico o agora em nome do amanhã. No amanhã tudo é melhor e nada acontece. O amanhã que nunca chega. Sacrifico sonhos de um tempo de liberdade pela ilusão de um mundo futuro onde se consome mais do que posso consumir agora. Nessa ilusão permito-me ser consumido. A utopia da juventude morre comigo, em um passado de rebeldia não fundamentada, sou agora uma mera carcaça que se arrasta e produz mais e mais.
Nosso tempo é mercadoria. Vendemos, em média, oito horas deste diariamente para que possamos – nas horas restantes – consumir os frutos do tempo perdido, vendido. Consumimos o tempo como um giro acelerado de festividades. Festividades nas quais compomos paródias vulgares do diálogo e da doação onde mitos nos tencionam a despesas econômicas absurdas e promessas seguidas de decepção. O conforto de uma decepção é encontrado então na promessa de outra decepção. Festejamos em uma época sem festas.
Nosso tempo não tem mais tempo que não é produzir e consumir, é tudo um grande ciclo onde o real e ilusório já não mais se distinguem. É fundamental nos esquecermos que o mundo já possui o sonho de um tempo e que para vive-lo de fato, devemos apenas possuir consciência dele.

Boas festas!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Nós, ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos

Das profundezas das catacumbas fétidas de lugar nenhum um forte ruído ecoa. Todos os cadáveres envolveram-se em uma árdua discussão por conta de uma inútil questão levantada por uma carcaça ainda em decomposição.
            - Será que existe vida antes da morte?
            - É claro que sim – retrucou um crânio – pois para estar morto pressupõe-se que um dia se esteve vivo!
            - Acho pertinente sua colocação meu caro amigo – disse um amigavelmente um dos defuntos – mas assim sendo, pergunto-lhe: o que é viver?
            Por um instante todos ficaram em silêncio, dada a complexidade da questão. Até que de dentro de um sarcófago, ouve-se uma voz:
            - Viver é estar vivo oras, ao contrário de nós que aqui estamos confinados, quem vive é livre para fazer de sua vida o que quer!
            - Será mesmo que quem vive é livre pra fazer o que quer de si mesmo?
Disse o defunto.
            - Estou certo disso
Afirmou a voz do sarcófago.
            - Concordo contigo – falou o defunto – quem vive é realmente livre para fazer o que quiser de si mesmo. São livres para comer, desde que tenham dinheiro para pagar por isso. São livres para trabalhar aonde quiserem desde que lhe queiram empregar. São livres para ir aonde quiserem, desde que tenham os documentos para cruzar as fronteiras e dinheiro para o transporte. Livres para amar, desde que o trabalho lhe dê tempo para fazê-lo com dignidade.
            - Mais deste ponto de vista, os vivos não são mais livres do que nós, que já esticamos as canelas – disse o crânio.
            - Pois é, mas eles têm a possibilidade de guiar a própria vida, de viver plenamente, mais preferem seguir como máquinas, fazendo todos os dias as mesmas coisas. Acordar cedo, ônibus, trabalho, almoço, trabalho, casa, dormir, acordar cedo, ônibus…sempre no mesmo ritmo, juntando as migalhas que ganham para que um dia possam curtir a vida como se deve – completou a carcaça.
            Até que sabiamente conclui o crânio:
            -Verdade, são todos escravos de si mesmos, deixam-se explorar e nem se dão conta disso. São todos uns tolos que esperam pela morte para começar a viver…
            Assim encerra-se mais uma noite de discussão inútil e tempo perdido nas terras de lugar nenhum que não pertencem a ninguém.

sábado, 11 de dezembro de 2010

O que são os rios?

Eles são a mistura da água que escoa das vertentes com todo o tipo de sedimentos: areia, silte, cascalho, argila, e uma porção de outros. Todos estes conduzidos para uma saída em comum, onde namoram as águas subterrâneas e superficiais, formando fluxos intensos, eróticos. O modelado do relevo tem aí sua contribuição fundamental, conduzindo essa mistura por um passeio pelos mais diversos lugares. Ora sobe, ora desce, ora reto, ora a ziguezaguear, devorando, sempre que pode, o barro vermelho das margens, acariciando as rochas, machucando a areia, infiltrando, sedimentando e mudando as cores de sua roupa. Por vezes se embriaga, levando consigo embaúbas, baobás, carros e casas. Até que finalmente, enjoado de tanto meandrar, vomita ao mar tudo aquilo que devorou no caminho.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Não Há Nada de Novo Sob o Sol

Preto, pobre, agredido, morto…
Não há nada de novo sob o Sol.
Mulher, agredida, violada, prostituída…
Não há nada de novo sob o Sol.

A luz que venda meu olhos
É a mesma que amarra minha boca
Cruzo com a morte a todo momento
E a cada esquina improviso uma saída
Para viver, provisoriamente, mais um instante.

As feridas do meu corpo queimam sob o azul do céu
Nuvens nefastas, árvores medonhas, flores do mau.
A agressão que rondava-me em vida estende-se pela morte
Um policial me vigia, nada faz, só vigia.
Enquanto minha vida escorre pelo ralo.
Assiste meu definhar com uma pitada de prazer.
O prazer da instituição, menos um!

Liberto-me agora do que me subjulgava, da própria vida.
Mais só assim me verei livre da agressão e da repressão?
Não há nada de novo sob o sol.

Dedicado a Samuel, mais uma estrela que se apaga nessa guerra civil cotidiana…