Ana, preta. Ana bela. Uma boniteza maltratada, um sentimento estranho que é dor, e é gozo.
Ana trabalha na casa de Nhô Afonso, um rico fazendeiro da região.
Todos os dias acorda de manhã cedinho, bem mais cedo que o resto da casa, para preparar as melhores gostosuras para o café-da-manhã. E todos os dias a patroa, Sinhá Alberta a xinga com muitos nomes feios, fala que o café está ruim, joga tudo no chão e diz:
- deixe de ser preguiçosa sua maldita, faça tudo de novo!
E Ana refaz, quieta, toda a comida, afinal de contas, as crianças precisam comer.
Logo em seguida Ana leva os filhos do patrão à escola, pois são eles o futuro da nação, precisam aprender muito pra ser grande gente grande. Ana leva as crianças no lombo, como se brincando de cavalinho. Os pivetes parecem levar a sério a brincadeira, enchendo-a de pontapés e socos na cabeça. Mas Ana agüenta a dor, afinal de contas, as crianças precisam comer.
À tarde Ana limpa a casa, deixa tudo brilhandinho pra sinhá patroa não reclamar. Mas Alberta achou um grão de pó no canto esquerdo da porta, e deu com a vassoura na cabeça de Ana, abrindo uma ferida enorme. Mais como estão todos muito longe de um médico, Ana agüenta a dor sem reclamar, afinal de contas, as crianças precisam comer.
Durante a noite Ana leva as crianças do patrão para a cama, para dormir, mas elas lhes chamam de muitos outros nomes feios, pois querem brincar de cavalinho um pouco mais. Depois Ana coloca seus próprios filhos para dormir, todos juntos sobre uma esteira de palha no chão, esta noite está muito frio.
Ana deita-se então em seu quarto, também em uma esteira de palha. O patrão entra no quarto, está cheio de desejos e quer que Ana os sacie. Ana resiste por um tempo, mais é inútil. Ele a machuca muito, e ela sente nojo do patrão, mas resiste bem, pois afinal de contas, as crianças, bastardinhos de Nhô Afonso, precisam comer.
E a rotina se repetia robóticamente todos os dias,até que um belo dia algo fora do normal acontece. Ana é liberta pelas forças públicas no dia 8 de Maio de 1892, quatro anos após o decreto da Lei Áurea, que se propunha a libertar os escravos de todo o Brasil. Quatro anos se perderam, talvez mais. Talvez a vida toda, a que se foi e a que virá. Mais agora Ana é livre.
Ana, preta. Bela Ana. Bela como todos os trabalhadores, que ainda não se libertaram...