domingo, 26 de setembro de 2010

Ana preta

Ana, preta. Ana bela. Uma boniteza maltratada, um sentimento estranho que é dor, e é gozo.
Ana trabalha na casa de Nhô Afonso, um rico fazendeiro da região.
 Todos os dias acorda de manhã cedinho, bem mais cedo que o resto da casa, para preparar as melhores gostosuras para o café-da-manhã. E todos os dias a patroa, Sinhá Alberta a xinga com muitos nomes feios, fala que o café está ruim, joga tudo no chão e diz:
- deixe de ser preguiçosa sua maldita, faça tudo de novo!
E Ana refaz, quieta, toda a comida, afinal de contas, as crianças precisam comer.
Logo em seguida Ana leva os filhos do patrão à escola, pois são eles o futuro da nação, precisam aprender muito pra ser grande gente grande. Ana leva as crianças no lombo, como se brincando de cavalinho. Os pivetes parecem levar a sério a brincadeira, enchendo-a de pontapés e socos na cabeça. Mas Ana agüenta a dor, afinal de contas, as crianças precisam comer.
À tarde Ana limpa a casa, deixa tudo brilhandinho pra sinhá patroa não reclamar. Mas Alberta achou um grão de pó no canto esquerdo da porta, e deu com a vassoura na cabeça de Ana, abrindo uma ferida enorme. Mais como estão todos muito longe de um médico, Ana agüenta a dor sem reclamar, afinal de contas, as crianças precisam comer.
Durante a noite Ana leva as crianças do patrão para a cama, para dormir, mas elas lhes chamam de muitos outros nomes feios, pois querem brincar de cavalinho um pouco mais. Depois Ana coloca seus próprios filhos para dormir, todos juntos sobre uma esteira de palha no chão, esta noite está muito frio.
Ana deita-se então em seu quarto, também em uma esteira de palha. O patrão entra no quarto, está cheio de desejos e quer que Ana os sacie. Ana resiste por um tempo, mais é inútil. Ele a machuca muito, e ela sente nojo do patrão, mas resiste bem, pois afinal de contas, as crianças, bastardinhos de Nhô Afonso, precisam comer.
E a rotina se repetia robóticamente todos os dias,até que um belo dia algo fora do normal acontece. Ana é liberta pelas forças públicas no dia 8 de Maio de 1892, quatro anos após o decreto da Lei Áurea, que se propunha a libertar os escravos de todo o Brasil. Quatro anos se perderam, talvez mais. Talvez a vida toda, a que se foi e a que virá. Mais agora Ana é livre.
Ana, preta. Bela Ana. Bela como todos os trabalhadores, que ainda não se libertaram...

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Carta aos Australopithecus

Olá!

Eu, homem moderno, diante de vosso primitivismo, me sinto na obrigação de lhes dizer o quanto evoluímos desde sua época.
Nós constituímos um novo modelo de sociedade, bastante diferente do vosso, e neste modelo é baseado todo o nosso progresso. Aqui, não necessitamos de caça, pesca, ou ir até uma fonte qualquer buscar água. Podemos trocar tudo isso por pedaços de papel numerados, que chamamos de dinheiro, um equivalente geral de troca que deixamos guardado em um lugar chamado banco. Praticamente todas as nossas relações giram em torno deste, que é o curriculum vitae da civilização.
            Outro avanço de nossa época é que não precisamos trabalhar, como vocês o fazem, para conseguir dinheiro e trocar por coisas. Aqui, podemos fazer com que outros trabalhem para nos dar tudo aquilo o que desejamos, e nós, que não trabalhamos, por caridade, damos aos que trabalham uma parcela do trabalho que este realizou, parcela que chamamos de salário. Mais que fique claro que o que lhes damos é só o suficiente para que estes continuem trabalhando.
            Ah, mais pra que isso seja possível sem que essas pessoas cometam a insolência de se rebelar ao fato de trabalharem para nós, nós inventamos algumas instituições bastante interessantes.
            Primeiro inventamos o Estado, para que possamos centralizar o nosso poder social em torno de nós mesmos. Inventamos também as leis, que são as nossas regras para deixar claro quem manda (nós) e quem obedece (todo o resto). Inventamos também a polícia e os exércitos, para que o nosso poder seja efetivado. Para que quem trabalha pense que essas coisas são naturais, ou seja, sempre existiram, inventamos a religião, a escola, e os meios de comunicação de massa (TV, rádio, internet, etc.).
            Enfim, podemos dizer que, desde sua época evoluímos tanto que o sexo, que em sua época servia simplesmente ao prazer e à reprodução, hoje também se troca por dinheiro. O prazer é menor, claro, pois não temos muito tempo a perder com isso. Estabelecemos entre homem e mulher uma relação meramente funcional, simplesmente para acalmar a nossa libido. Qualquer outra forma bárbara de relação sexual é abominada, a estes que insistem em manter relações que consideramos anormais, colocamos fora do absoluto convívio social, mas fingimos aceita-los, para evitar a fadiga.
            A muitos dos seres que deveriam trabalhar, fazemos questão de não dar ocupação alguma. Isso por que, quando muitos estão sem emprego, podemos reduzir o dinheiro pago aos que trabalham, pois muitos trabalhariam por muito menos do que eles. É essencial mante-los desesperados!
            Mante-los com fome, sem abrigo, sem prazer e o melhor modo de dominá-los, é um jeito de fazer com que se vendam bem barato, para que assim tenhamos menos custos e possamos juntar mais dinheiro em menos tempo.
            Espero que, com este curto resumo do modo como funciona a nossa sociedade, vocês, povos primitivos possam otimizar sua evolução para que cheguem mais cedo a ser como nós, homens (nem sempre mulheres) do progresso. É para nós um fardo grandioso conduzir ao progresso o nosso mundo, e queremos compartilhá-lo com os homens de sua época. Caso na se sintam contemplados com a proposta, entenderemos que sua ignorância é tamanha que não conseguem vislumbrar a grandeza do mundo moderno, e por isso contnuam no primitivismo. Lhes garanto, será melhor que aceitem.

Ass; Homem da civilização.