segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Quando o morro descer e não for carnaval

Há 300 anos a senzala avisa
Que seu sistema social
Baseado na miséria e exclusão
Têm efeito colateral

O menino rico leva tiro
Em frente seu carro blindado
A madame fútil e insossa
teria o patrimônio violado

Papai morreu em um assalto
Titio já não sai à rua
E a fome do menino da sarjeta
Incomoda à vista da perua

Mas o você fez para melhorar?
Aumentou a repressão
Enriqueceu sobre nossa miséria
Legitimou o Estado – massacre – policial
Violentou nossos corpos, nossas almas
Nos tirou a dignidade
Trancou-nos em presídios
Tirou nossa educação
Ampliou o latifúndio
Tomou nossas terras
Tomou nossas vidas
Nossa dignidade

E nos fez acreditar
Que era tudo justo, natural
Que humanidade é egoísta
E seu instinto é o mal

Mas descobrimos agora
Qual é a do seu sistema
Nossa maldade foi você quem criou
E agora é pra você um problema

E hoje a favela avisa
Que quando o morro descer
E não for carnaval
Não sobrará pedra sobre pedra

O mundo será diferente
Sem privilégios pra vocês
Por que se vivemos
É para decepar os reis.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Autonomia

Mundo, vasto mundo, se me chamasse Raimundo seria peão, pra tocar boiada.
Não há espetáculo mais belo nessa terra do que o encontro de uma boiada de várias centenas, milhares de animais guiados por um grupo de peões, imutavelmente constituídos. O comissário segue à frente, negocia as etapas, comercializa o rebanho. Junto à ele segue o ponteiro, que com seu berrante avisa os companheiros sobre paradas, travessias, obstáculos. Os guias variam de acordo com o tamanho do rebanho, colocam-se à frente e aos lados, certificando-se que todo rebanho esteja em condições de seguir a caminhada enquanto o chave vai na retaguarda. O culateiro vai mais atrás, cuidando dos bezerros e enfermos, que não conseguem acompanhar a tropa.
            Todo fim de tarde, após ter caminhado dezenas de quilômetros, o gado pára à beira da estrada onde se alimentam do pasto, descansam e são tratados pelos peões. Dormem sob as estrelas, sem abrigo, em noites que, muitas vezes são frias e  - apesar do grande número de indivíduos – solitárias. Todos os dias a rotina é repetida, sempre conduzidos, todos no mesmo rumo: o abatedouro.
            Agora fico aqui imaginando, são milhares de bois, e pouquíssimos peões. Cena realmente maravilhosa seria se cada boi se visse como parte da boiada e, cansado do abatedouro cotidiano, botasse os peões pra correr, escolhendo então, quais o pastos que irão percorrer.
            Eta vida de gado! Eta povo marcado! Povo feliz?

domingo, 2 de outubro de 2011

O Espetáculo de Narcísio.

Narcísio era belo e o sabia. Todos os dias fitava-se em frente ao espelho, admirava-se. Estava apaixonado. Horas e horas do dia eram perdidas em frente à aquele objeto reluzente. Passou a amar a imagem, e preferia esta ao real, o significante a significado, amava a imagem e odiava a si próprio.
O espetáculo repetia-se cotidianamente. Deixou de comer, conversar, estudar, relacionar-se. Deixou de pensar. Seu único pensamento era a imagem refletida no espelho, ela era a verdade absoluta, era a imagem do mundo, era o mito que se impunha ao mundo concreto. A própria vida deixou de ser importante.
Essa paixão que, repito, não era por si mesmo, mas pela imagem especulada e espetacularizada, o levou a loucura. Os amigos tentavam alertá-lo, mas de nada adiantava, eles eram menos reais que a imagem.
Um belo dia, ao sair – forçada-mente – com os amigos e ver as belezas do mundo admirou-se com as coisas que estava perdendo enquanto olhava-se no espelho, ficou impresionado com o mundo, tal como ele era.
Um lago mostrou-se à sua frente e sua beleza era tanto que se aproximou, lentamente, deste. Que coisa tão bela era aquela, que nunca tinha visto? Era uma beleza fantástica, única, indescritível... Era o seu reflexo na água. Este, num impulso incontrolável saltou no lago em busca da própria imagem. Esta esboroou-se e a lama passou a puxá-lo para cada vez mais fundo. Estava afogando-se e sentiu-se tão sufocado quanto um trabalhador condenado vender-se oito horas por dia para sobreviver. O reflexo que o dominava, naquele instante, passou a causar-lhe repulsa, a mesma de quem está morrendo e sabe o porquê. As luzes do mundo se apagaram.
Acorda algumas horas depois em seu quarto, um amigo, que também era bom nadador o salvou da morte. Neste instante decidiu quebrar todos os espelhos, e viver o avesso da imagem que por tanto tempo o encantou. Queria agora mudar o mundo, que via agora com clareza...
Eis a Utopia.