sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Caldo de dia

Quando acaba, tudo o que resta é a música.
Cabe-nos pensar não dentro, mas fora da cabeça.
E o tempo, é só o pensamento diante de sua tristeza.
A fome, quando ataca o homem, come até o oceano.
A fita não pára, nem volta pra trás,
Não incita o teu medo para onde estiver,
O ouro que te morre, te corre e te mata,
Assanha a tantos outros, ao mesmo instante
A fome de vida te faz enjaulado
Em grades de diamante, encravado de ouro e barro.
Te faz éter migrante, embriagado, exaltante.
O flácido metal corta o instante
Do mundo tocante que você me escolheu
O fim é o que acaba com o pensamento.
Não basta meu corpo neste momento,
Basta o mundo acabar...

Nas pessoas é que se escreve a História.
Feita de mar, de sangue e de rios
O que emana de ti preenche o vazio
Mais que um instante e se acaba a memória.

Só a força do Sol te embriaga em veneno,
E quando eu nascer da pequenina dor
Que avança o covarde e faz nascer o amor
Já que o infinito me basta, é pequeno.

Duas gotas de conhaque já me trazem à harmonia
Eu sou a luxúria! Eu sou o amor!
Da minha grande batalha que não me adianta, só atrapalha

E aquela beleza do belo verbete instigado
É a bruma, é a tarde, é frio.
E corta o peito como fio de navalha

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Sobre Deus e o Diabo.

Hoje eu conheci Deus. Hoje eu conheci o Diabo. Apresentaram-se assim, juntos, num lugar que está entre o tudo e o nada, entre o cheio e o vazio.
            Eram como irmãos gêmeos, se é que seres de divina origem apresentam, com qualquer ser, algum parentesco. O fato é que eram idênticos em aparência, de idênticas feições e gestos. Tinham ausentes todos os pelos do corpo, de nariz fino e comprido; a fala lenta e a voz de uma grave agudeza. Era impossível distinguir-lhes o sexo ou o gênero, uma vez que misturavam traços masculinos e femininos; de macho e de fêmea. Eram de uma androgenia sem igual no mundo. A cor da pele era de um tom entre o róseo e o marrom escuro, de aspecto semelhante aos mais nobres metais. Apresentavam, ao mesmo tempo, uma força imensa e uma delicada fragilidade.
            Só era possível distingui-los um do outro pelas vestes e pelos olhos. Vestiam, os dois, um manto curto que lhes chegava, no máximo, ao meio das coxas, dotando-os de intensa sensualidade. Eram idênticas as mantas, justas na cintura e deixando, por vezes, o seio à mostra. Variavam apenas na cor. Deus vinha de rosa, enquanto o Diabo vestia um verde claro, próximo ao que vemos em roupas de hospital. Os olhos de Deus eram singulares, assim como os do Diabo. Deus tinha azul o olho direito e castanho o olho esquerdo. O Diabo era o exato oposto; castanho o direito e azul o esquerdo. De resto eram inteiramente idênticos um do outro, como se fossem a réplica de um mesmo ser.
            Longe de serem opostos um ao outro, Deus e o Diabo completam um ao outro e simultaneamente se contradizem. Os poderes de um aumentam na exata medida em que os do outro, sem variação alguma. Portanto, o Diabo, para cumprir seu papel histórico no mundo, colabora com Deus na medida em que esse pretende-se aumentar a si mesmo enquanto totalidade. Se um cresce, o outro o acompanha, da mesma forma que quando um deles resolve diminuir-se de tamanho.
            Nesta longuíssima conversa com Deus e com o Diabo, soube eu de tudo o que acontece neste mundo; tudo o que já aconteceu e tudo o que acontecerá. Eu vi a mesma serpente que adornava o império dos Faraós tentar Eva nos Jardins do Éden e matar Cleópatra após uma noite de embriaguez. Vi Abel, que era agricultor, matar Caim, pastor de muitos animais, mudando totalmente o modo como homens e mulheres viviam até então. Vi Malaquías partir para a guerra ao lado de Judas – não àquele que traiu um certo homem e depois se enforcou – enfrentando o exército romano, morrendo na guerra e levando consigo o inocente José, crucificado. Vi Sócrates – aquele da Maiêutica – ser condenado à morte por envenenamento por persuadir a juventude contra os Deuses. Vi Maria Madalena vender seu corpo pelo alimento de cada dia ser santificada, ao contrário de todas as suas colegas de profissão que existiram antes e depois: essas foram amaldiçoadas. Vi rios e rios de sangue em nome de sabe-se lá o que. Conheci Antônio Conselheiro, Thomas Morus, Barnabé de Chipre, Catarina de Alexandria, Cucufate de Barcelona, os Gêmeos Gervásio e Protássio, Januário de Nápoles, Che Guevara, Pancho Villa, Pantaleão de Nicomedia, Virgulino Ferreira da Silva, Martin Luther King, Mahatma Gandhi, Zumbi dos Palmares, Carlos Marighella, Olga Benário, Galdino Jesus dos Santos, Maria Ângela Ribeiro, Iara Iavelberg, Arno Preis, Aurora Maria do Nascimento Furtado, Al Hajj Malik Al-Habazz, Dorothy Stang, e muitos outros.
            Conheci cada homem e cada mulher, e mesmo outros seres que virão a habitar esse planeta, vi Deus e o Diabo em cada um deles e em todos, simultaneamente. Vi pessoas ganhando o mundo em troca de sua alma; gente de todo o tipo trocar suas vidas pelos mitos mais diversos; vi matar e morrer por uns tantos quinhões de moedas; irmão matar irmão; o egoísmo matar de fome; coberturas e favelas; palácios e cortiços. Vi morrer de velhice aos 30 anos; boas idéias serem sufocadas; banho de sangue contra indígenas e camponeses de todo o mundo.
            Vi também, e foi o que mais me impressionou, um grande monstro, que faz matar e faz morrer. Uma quimera da mais horrendas, daquelas que tem diversas cabeças, armas e números, aprisionando e enlouquecendo uns tantos, transformando tantos outros em pedra. Se alimentando de carne humana, possui uma fome de tal modo insaciável que, por falta de comida passa a alimentar-se de partes de si mesmo. Essa atitude autofágica, apesar de lhe prolongar a vida, o consome pouco a pouco, até chegar ao ponto onde não há mais o que comer. Nem há mais monstro, pois este já não passa de uma pilha de ossos.
            Aos desalienados que sobreviveram – pois esconderam-se muito bem atrás de suas idéias e de suas armas – coube juntar Deus e o Diabo em um único ser, rompendo com toda a lógica e a proporção então existente, contrariando todas as leis e botando fim a todo o mundo até então conhecido. Por fim, depois de milhares e milhares de anos vivendo na pré-história, finalmente poderão abrir suas cabeças e, daí pra diante, realizar a verdadeira História humana.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Lista para mim


Acordar cedo comer tomar banho estudar preparar aula refletir pegar metro ter grandes ideias inúteis sobre a luta de classes dar aula caminhar fazer exercício pegar ônibus comer coisas saudáveis ganhar algum dinheiro conversar com pessoas encontrar amigos tomar cerveja ler jornais reunião de grupo de estudos iniciação científica pesquisa de campo comprar do livro do Sérgio Buarque de Holanda xerocar textos para a aula de amanhã comer doces gordurosos guardar dinheiro para viagem escrever texto treinar meu espanhol voltar a estudar francês correr até a sala de aula atrasado refletir sobre conteúdos dormir acordar continuar prestando atenção à aula pensar nas contas à pagar comprar mesa farinha e ovo fazer o jantar sair da sala de aula ônibus lotado metrô alunos processados reitoria política polícia ladrão periferia alguém à beira do rio maconha gripe a grande contradição do mundo contemporâneo Karl Marx estruturalismo dialética Henri Lefebvre assalto tiro na testa fazer sexo falar ao telefone acessar e-mails...e dia após dia não ver sentido em nada disso.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

O Copo


Que é este copo? Aqui, à minha frente. Feito de plástico, branco, reluzente e manchado de café. Que é ele?
Objeto côncavo, frágil, que serve de recipiente, geralmente para líquidos. Será ele só isso?
Não terá ele sido produzido na China, por trabalhadores em condições precárias, utilizando-se de petróleo libanês como matéria prima, transportado em um cargueiro inglês e manuseado por diversas pessoas antes que eu pudesse tê-lo na mesa para degustar um café africano? Ou foram outros os seus trajetos?
Este copo, agora, à minha frente é tudo isto. E já não o é.
Ele é forma e conteúdo. É objeto em si e a idéia que se faz dele. É consciência que se faz – sendo feita – por mim, para mim e para o mundo.
Logo, a forma do copo, vai muito além de sua forma material. O copo é mercadoria, que se compra e que se vende; que tem sua utilidade como uso ou como troca para o vendedor e o comprador simultaneamente. Relação esta que se faz mediante um equivalente de valor: o Dinheiro. O vendedor ao vender-me o copo, usou os mesmos dois reais para comprar uma revista que, a seguir, rendeu ao jornaleiro uma lata de refrigerante; que foi apanhada por um catador de materiais recicláveis rendendo-lhe, junto à outras tantas os 10 reais que vão alimentar seus três filhos por hoje. O copo, a revista, o refrigerante, a lata e os filhos se vão. Mas o dinheiro permanece reproduzindo relações de compra, de venda e de troca. Segue reproduzindo relações e condições sociais.
Isso é claro se tratando de troca simples, onde o sentido de uma mercadoria é a aquisição de outra mercadoria. Quando uma mercadoria passa a pressupor a geração pura e simplesmente de dinheiro, ou seja, o sentido da troca é a própria troca – tautologia (!) – a mercadoria em si se torna desnecessária, servindo de mera mediação entre dinheiro e mais – ou menos – dinheiro.
Portanto, neste mercado de ilusões, relações mágicas me fazem trocar 5 reais por 7; 7 por 11; 11 por 100; e assim por diante. Neste momento, este, que é o milagre da multiplicação, passa a chamar-se Capital.
Logo, o capital, que deve ser acumulado mais e mais (pois este é o seu sentido), necessita de mercadorias que o atravessem, que o justifiquem, necessitando de um trabalho que produza estas mesmas mercadorias.
O petróleo, que serviu de matéria prima para a confecção deste copo, foi extraído por trabalhadores que tiveram de perfurar um determinado solo, à determinada profundidade, com determinada técnica; foi transportado por marinheiros pelos oceanos, passando pelas bolsas de valores de todo o mundo, chegando a uma fábrica, onde pessoas o transformaram em copo e o embalaram. Cada pessoa que interferiu no processo realizou um trabalho, pois transformou determinado elemento da Natureza em algo que lhe era útil – o copo – agregando valor a esta matéria. Portanto, cada trabalhador que realizou certa quantidade de movimentos físicos e mentais viabilizou com que este copo suprisse minha necessidade de tomar café.
Para isso, cada um deles recebeu um salário, certa quantia em dinheiro, fruto do trabalho realizado, com o qual comprou comida, roupas, livros, água, luz, telefone e algum lazer.
Mas é claro que nenhum deles recebeu em dinheiro a totalidade do valor gerado com seu trabalho. Grande parte deste é tomado pelos donos das máquinas e meios de produção para que estes possam acumular...Capital!!! Lembra-se dele?
Com o acúmulo de capital, o dono das máquinas troca estas por máquinas ainda mais eficientes, para que com isso precise de menos trabalhadores para produzir a mesma quantidade de copos. Trabalhadores são demitidos, permitindo menores gastos com salários e o conseqüente barateamento do preço do copo, já que graças às novas máquinas, o trabalho empregado em cada copo é menor, permitindo com que, para mim, ele custe 2 reais, ao invés de 3, 5, ou 7.
Estes trabalhadores, agora desempregados, iniciam um processo de martirização de si próprios, um auto-flagelo, pois matam e morrem para tentar garantir a própria sobrevivência, engordando as estatísticas de violência urbana, dos conflitos no campo, das reintegrações de posse em favelas, dos esfomeados, dos drogados incorrigíveis, dos psicopatas, enfim, de todos aqueles que infringem à moral e os bons costumes. São eles causa e conseqüência de tudo o que os oprime. Causa e conseqüência de si mesmos.
Uma vez que se tornaram dispensáveis para a lógica da produção capitalista, deixam de produzir valor do qual lhe é tomada a maior parte – ou seja, deixam de receber o salário - e ao mesmo tempo em que não podem acessar as mercadorias por meio da compra, pressionam o salário de todos os outros trabalhadores para baixo, diminuindo o acesso destes à mesma mercadoria negada aos desempregados. Aos que permanecem com seus empregos, vendo-se projetados no outro, preferem a diminuição do salário a salário nenhum. Tal processo se intensifica ao ponto de necessitar empregar parte destas pessoas em setores que não geram valor – bancos, comércio, etc. – pois não produzem mercadoria, apesar de produzirem a realização desta enquanto tal, para que o sistema de acumulação de capital continue se realizando, já que não tendo as pessoas um salário, não compram mercadorias e não permitem que o capital gere mais capital, como dito, em nossa saudosa e duradoura tautologia.
Por outro lado, o salário do atendente do supermercado que me vendeu o copo deve ser retirado de alguma base material, já que este não gera valor com sua função de atendente. Então, para pagar o salário deste, aqueles primeiros, os que permaneceram produzindo, tem que trabalhar mais e mais recebendo cada vez menos para que o atendente consiga ter o seu salário e compre mercadorias, mantendo a acumulação. Exemplos claros no mundo contemporâneo são os bolivianos que trabalham em confecções do Brás, centro de São Paulo, em regime de escravidão, ou os cortadores de cana-de-açúcar que, disputando com as máquinas colheitadeiras, chegam a cortar 20 toneladas decana por dia.
Mas mesmo assim, o capital acumulado é investido em máquinas cada vez mais eficientes, que ocupam sempre novos espaços, demitindo cada vez mais trabalhadores que, desempregados pressionam os primeiros a ser mais e mais explorados para aumentar o capital e investir em mais máquinas, demitindo mais gente em um grande ciclo que a cada vez que se realiza renova-se, inserindo algo de novo que o leva a superação de si mesmo. Que o leva a destruição. Enquanto isso aumenta o número dos sem lugar.
Portanto, neste copo vazio de café está a parte e o todo, o emprego e o desemprego, o tudo e o nada, a comida e a fome, o preto e o branco. Estou eu, você, o mundo todo. Impregnado a este copo esta todo o sistema capitalista, sua crise e o seu fim.

sábado, 31 de março de 2012

O vôo da tarde

Há no fim da tarde, quando o Sol começa a se por, um fenômeno interessantíssimo, pouco visto e estudado,  ocorre e nos revela algo sobre a humanidade.
            Após passar todo o dia a dormir a coruja sai em um vôo panorâmico por toda a floresta, observando as árvores, os pássaros, os animais, o vento, o céu, o clima, e todas as coisas. Na floresta, a coruja é extremamente conhecida por sua sabedoria e, por isso, sempre que questões e conflitos acontecem, é a ela que vão buscar a resposta: como fazer? Como proceder? Para onde ir?
            Sendo assim, a coruja planeja tudo na floresta, onde ficam os pássaros, para onde as sementes devem ser levadas, como proceder com os animais carnívoros, como estocar alimentos para o inverno, etc. Qualquer verdade que não seja a da coruja, que tudo sabe e tudo vê é, tão logo, ignorada.
            Mas a Coruja, que passa o dia todo dormindo, faz um único vôo durante ao entardecer. Julga conhecer a totalidade, sabendo tudo o que acontece com todos os seres. Conhece tudo e todos. Só não conhece o amanhecer.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Quando o morro descer e não for carnaval

Há 300 anos a senzala avisa
Que seu sistema social
Baseado na miséria e exclusão
Têm efeito colateral

O menino rico leva tiro
Em frente seu carro blindado
A madame fútil e insossa
teria o patrimônio violado

Papai morreu em um assalto
Titio já não sai à rua
E a fome do menino da sarjeta
Incomoda à vista da perua

Mas o você fez para melhorar?
Aumentou a repressão
Enriqueceu sobre nossa miséria
Legitimou o Estado – massacre – policial
Violentou nossos corpos, nossas almas
Nos tirou a dignidade
Trancou-nos em presídios
Tirou nossa educação
Ampliou o latifúndio
Tomou nossas terras
Tomou nossas vidas
Nossa dignidade

E nos fez acreditar
Que era tudo justo, natural
Que humanidade é egoísta
E seu instinto é o mal

Mas descobrimos agora
Qual é a do seu sistema
Nossa maldade foi você quem criou
E agora é pra você um problema

E hoje a favela avisa
Que quando o morro descer
E não for carnaval
Não sobrará pedra sobre pedra

O mundo será diferente
Sem privilégios pra vocês
Por que se vivemos
É para decepar os reis.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Autonomia

Mundo, vasto mundo, se me chamasse Raimundo seria peão, pra tocar boiada.
Não há espetáculo mais belo nessa terra do que o encontro de uma boiada de várias centenas, milhares de animais guiados por um grupo de peões, imutavelmente constituídos. O comissário segue à frente, negocia as etapas, comercializa o rebanho. Junto à ele segue o ponteiro, que com seu berrante avisa os companheiros sobre paradas, travessias, obstáculos. Os guias variam de acordo com o tamanho do rebanho, colocam-se à frente e aos lados, certificando-se que todo rebanho esteja em condições de seguir a caminhada enquanto o chave vai na retaguarda. O culateiro vai mais atrás, cuidando dos bezerros e enfermos, que não conseguem acompanhar a tropa.
            Todo fim de tarde, após ter caminhado dezenas de quilômetros, o gado pára à beira da estrada onde se alimentam do pasto, descansam e são tratados pelos peões. Dormem sob as estrelas, sem abrigo, em noites que, muitas vezes são frias e  - apesar do grande número de indivíduos – solitárias. Todos os dias a rotina é repetida, sempre conduzidos, todos no mesmo rumo: o abatedouro.
            Agora fico aqui imaginando, são milhares de bois, e pouquíssimos peões. Cena realmente maravilhosa seria se cada boi se visse como parte da boiada e, cansado do abatedouro cotidiano, botasse os peões pra correr, escolhendo então, quais o pastos que irão percorrer.
            Eta vida de gado! Eta povo marcado! Povo feliz?