Que é este copo? Aqui, à minha
frente. Feito de plástico, branco, reluzente e manchado de café.
Que é ele?
Objeto côncavo, frágil, que serve
de recipiente, geralmente para líquidos. Será ele só isso?
Não terá ele sido produzido na
China, por trabalhadores em condições precárias, utilizando-se de
petróleo libanês como matéria prima, transportado em um cargueiro
inglês e manuseado por diversas pessoas antes que eu pudesse tê-lo
na mesa para degustar um café africano? Ou foram outros os seus
trajetos?
Este copo, agora, à minha frente é
tudo isto. E já não o é.
Ele é forma e conteúdo. É objeto
em si e a idéia que se faz dele. É consciência que se faz –
sendo feita – por mim, para mim e para o mundo.
Logo, a forma do copo, vai muito além
de sua forma material. O copo é mercadoria, que se compra e que se
vende; que tem sua utilidade como uso ou como troca para o vendedor e
o comprador simultaneamente. Relação esta que se faz mediante um
equivalente de valor: o Dinheiro. O vendedor ao vender-me o copo,
usou os mesmos dois reais para comprar uma revista que, a seguir,
rendeu ao jornaleiro uma lata de refrigerante; que foi apanhada por
um catador de materiais recicláveis rendendo-lhe, junto à outras
tantas os 10 reais que vão alimentar seus três filhos por hoje. O
copo, a revista, o refrigerante, a lata e os filhos se vão. Mas o
dinheiro permanece reproduzindo relações de compra, de venda e de
troca. Segue reproduzindo relações e condições sociais.
Isso é claro se tratando de troca
simples, onde o sentido de uma mercadoria é a aquisição de outra
mercadoria. Quando uma mercadoria passa a pressupor a geração pura
e simplesmente de dinheiro, ou seja, o sentido da troca é a própria
troca – tautologia (!) – a mercadoria em si se torna
desnecessária, servindo de mera mediação entre dinheiro e mais –
ou menos – dinheiro.
Portanto, neste mercado de ilusões,
relações mágicas me fazem trocar 5 reais por 7; 7 por 11; 11 por
100; e assim por diante. Neste momento, este, que é o milagre da
multiplicação, passa a chamar-se Capital.
Logo, o capital, que deve ser
acumulado mais e mais (pois este é o seu sentido), necessita de
mercadorias que o atravessem, que o justifiquem, necessitando de um
trabalho que produza estas mesmas mercadorias.
O petróleo, que serviu de matéria
prima para a confecção deste copo, foi extraído por trabalhadores
que tiveram de perfurar um determinado solo, à determinada
profundidade, com determinada técnica; foi transportado por
marinheiros pelos oceanos, passando pelas bolsas de valores de todo o
mundo, chegando a uma fábrica, onde pessoas o transformaram em copo
e o embalaram. Cada pessoa que interferiu no processo realizou um
trabalho, pois transformou determinado elemento da Natureza em algo
que lhe era útil – o copo – agregando valor a esta matéria.
Portanto, cada trabalhador que realizou certa quantidade de
movimentos físicos e mentais viabilizou com que este copo suprisse
minha necessidade de tomar café.
Para isso, cada um deles recebeu um
salário, certa quantia em dinheiro, fruto do trabalho realizado, com
o qual comprou comida, roupas, livros, água, luz, telefone e algum
lazer.
Mas é claro que nenhum deles recebeu
em dinheiro a totalidade do valor gerado com seu trabalho. Grande
parte deste é tomado pelos donos das máquinas e meios de produção
para que estes possam acumular...Capital!!! Lembra-se dele?
Com o acúmulo de capital, o dono das
máquinas troca estas por máquinas ainda mais eficientes, para que
com isso precise de menos trabalhadores para produzir a mesma
quantidade de copos. Trabalhadores são demitidos, permitindo menores
gastos com salários e o conseqüente barateamento do preço do copo,
já que graças às novas máquinas, o trabalho empregado em cada
copo é menor, permitindo com que, para mim, ele custe 2 reais, ao
invés de 3, 5, ou 7.
Estes trabalhadores, agora
desempregados, iniciam um processo de martirização de si próprios,
um auto-flagelo, pois matam e morrem para tentar garantir a própria
sobrevivência, engordando as estatísticas de violência urbana, dos
conflitos no campo, das reintegrações de posse em favelas, dos
esfomeados, dos drogados incorrigíveis, dos psicopatas, enfim, de
todos aqueles que infringem à moral e os bons costumes. São eles
causa e conseqüência de tudo o que os oprime. Causa e conseqüência
de si mesmos.
Uma vez que se tornaram dispensáveis
para a lógica da produção capitalista, deixam de produzir valor do
qual lhe é tomada a maior parte – ou seja, deixam de receber o
salário - e ao mesmo tempo em que não podem acessar as mercadorias
por meio da compra, pressionam o salário de todos os outros
trabalhadores para baixo, diminuindo o acesso destes à mesma
mercadoria negada aos desempregados. Aos que permanecem com seus
empregos, vendo-se projetados no outro, preferem a diminuição do
salário a salário nenhum. Tal processo se intensifica ao ponto de
necessitar empregar parte destas pessoas em setores que não geram
valor – bancos, comércio, etc. – pois não produzem mercadoria,
apesar de produzirem a realização desta enquanto tal, para que o
sistema de acumulação de capital continue se realizando, já que
não tendo as pessoas um salário, não compram mercadorias e não
permitem que o capital gere mais capital, como dito, em nossa saudosa
e duradoura tautologia.
Por outro lado, o salário do
atendente do supermercado que me vendeu o copo deve ser retirado de
alguma base material, já que este não gera valor com sua função
de atendente. Então, para pagar o salário deste, aqueles primeiros,
os que permaneceram produzindo, tem que trabalhar mais e mais
recebendo cada vez menos para que o atendente consiga ter o seu
salário e compre mercadorias, mantendo a acumulação. Exemplos
claros no mundo contemporâneo são os bolivianos que trabalham em
confecções do Brás, centro de São Paulo, em regime de escravidão,
ou os cortadores de cana-de-açúcar que, disputando com as máquinas
colheitadeiras, chegam a cortar 20 toneladas decana por dia.
Mas mesmo assim, o capital acumulado é
investido em máquinas cada vez mais eficientes, que ocupam sempre
novos espaços, demitindo cada vez mais trabalhadores que,
desempregados pressionam os primeiros a ser mais e mais explorados
para aumentar o capital e investir em mais máquinas, demitindo mais
gente em um grande ciclo que a cada vez que se realiza renova-se,
inserindo algo de novo que o leva a superação de si mesmo. Que o
leva a destruição. Enquanto isso aumenta o número dos sem lugar.
Portanto, neste copo vazio de café
está a parte e o todo, o emprego e o desemprego, o tudo e o nada, a
comida e a fome, o preto e o branco. Estou eu, você, o mundo todo.
Impregnado a este copo esta todo o sistema capitalista, sua crise e o
seu fim.